Ofício de tradutor

Quem é o tradutor, aquela pessoa afeita à caneta e, nos dias de hoje, ao laptop, cujo trabalho consiste em transpor – frase por frase, ideia por ideia – os mais diversos textos de um idioma para o outro? Brilhante linguista que se empenha em decifrar os mistérios das épocas remotas e dos países longínquos, levando-os ao conhecimento do curioso público, ou escritor frustrado que se contenta em popularizar os livros de outrem por lhe faltarem sorte ou coragem na promoção dos seus? Artesão das palavras que preza pela qualidade formal de suas versões longa e pacientemente lapidadas a ponto de subestimar a profundeza espiritual dos originais vertidos, ou provedor da aproximação cultural entre os povos, que muitas vezes nada têm em comum, além da literatura traduzida e, dessa maneira, compartilhada?

Não sou adepto de nenhuma destas opiniões, sejam corretas ou não… Para mim, o tradutor é, antes de tudo, um bom professor incumbido de ensinar aos autores estrangeiros uma língua bem diferente da que deu asas à criatividade deles. Há professores que, por algum motivo, tomaram conta de uma só turma escolar; assim foi o poeta russo Nikolai Gnêditch que dedicou a vida inteira à tradução da grandiosa Ilíada de Homero. Há mestres que criaram toda uma plêiade de discípulos talentosos; este seria o caso de Tadeusz Boy-Źeleński, cujo labor incansável brindou os leitores poloneses com a chamada “biblioteca de Boy” composta de quase 100 tomos traduzidos do francês. O mesmo se refere aos virtuais alunos: há quem estude aplicado e obediente (tais são as obras de Gustave Flaubert e seu amigo Ivan Turguênev, facilmente lidas e interpretadas em qualquer parte do mundo) e quem se mostre cheio de rebeldia (os colegas que já tentaram traduzir, digamos, Guimarães Rosa com seus abundantes neologismos, herméticos até para os conterrâneos dele, não me permitiriam mentir acerca das dificuldades técnicas desse tipo de tradução). Aliás, poderia citar as minhas próprias experiências com os autores que traduzo dia após dia. Fiódor Dostoiévski é um aluno problemático. Seu estilo me tira volta e meia do sério: parece que o escritor não atenta absolutamente para o lado estético de seus livros, escrevendo tudo quanto lhe passa pela cabeça sem se importar com o conforto de quem for lê-los. “Será que não daria para trabalhar um pouco mais a forma?” – venho travar uma conversa imaginária com ele –, “desde que o conteúdo é tão exímio assim? Sabe… diminuir o tamanho das frases, evitar essas frequentes repetições e, sobretudo, essas contradições que deixam o leitor, por mais que se habitue à sua escrita, de queixo no chão, abrir mão das palavras que constam nos dicionários, mas nunca se empregam na vida cotidiana?” – “Não daria, não! Escrevo do jeito que quiser” – responde Dostoiévski, cáustico como sempre foi. – “Que o leitor use a cuca; senão, que vá tomar banho!” Leon Tolstói é, pelo contrário, um aluno exemplar. Sua narração não é áspera nem contraditória, seu pensamento se desdobra lenta, mas logicamente, de modo que a maioria dos leitores o capta e assimila sem o menor esforço. Acabo por elogiá-lo: “Está tudo certo, senhor conde! Parabéns pelos seus textos, bem fáceis e agradáveis de traduzir”. – “Vous êtes trop gentil envers moi” – responde Tolstói em francês, como falava em vida com seus próximos. – “Je ne sais si je le mérite… après tout, je ne cherche qu’à me faire comprendre[1]”. Se fosse possível medir o desempenho desses corifeus russos com uma banal escala numérica, ganhariam ambos a nota 10: Dostoiévski pela complexidade linguística, e Tolstói, pela transparência clássica de seus escritos. E por aí vai, sendo inúmeros os obstáculos que todo e qualquer tradutor literário tem de superar em seu trabalho rotineiro, as dúvidas que o cercam, as opções e divergências que o desesperam.

Em resumo, a figura do tradutor é tão humilde e, ao mesmo tempo, sublime quanto a do educador: seu nome vem impresso em letras miúdas, seus honorários nem se comparam aos de uma estrela literária, porém o mérito e a glória de sua profissão revelam-se incontestáveis. Igual ao pedagogo entusiasmado com o sucesso dos antigos pupilos que cresceram e apareceram, eu me sinto todo orgulhoso de ter ensinado Baudelaire e Púchkin a falar português. E este é o maior estímulo para cumprir em rigor o meu ofício modesto e nobilíssimo!

Oleg Almeida

[1] É muita gentileza sua. Não sei se mereço isso… no fim das contas, só procuro fazer que me entendam.