Letras Russas (Parte 1)

A TERRA INCÓGNITA DAS LETRAS RUSSAS
Oleg Almeida

Um dia, conversando com os estudantes de uma faculdade de Letras, toquei num assunto inesperado: “Sabem onde é a Rússia?” e, como as respostas afirmativas vinham de todos os lados, acrescentei: “E o que é a Rússia para vocês?” Minha pergunta foi desafiadora.
– A Rússia é o maior país do mundo – respondeu um rapaz de óculos. – Tem o dobro do território brasileiro, se não me engano.
– Na Rússia faz um frio de rachar – comentou uma moça lourinha. – Há cidades em que a noite polar dura meses inteiros. Não sei como ele aguenta, aquele povo…
– Assisti a um filme russo, chamado Guardiões da Noite – disse outra moça, cujos cabelos alaranjados evidenciavam sua afeição pelo cosplay. – Achei muito bacana. É uma história sobre vampiros.
– A próxima Copa do Mundo vai ser justamente na Rússia – tomou a palavra um valentão que ostentava as cores do Flamengo. – Só que a seleção russa não fez tanta coisa na última Copa…
– Meu Deus do céu! – exclamou de repente a professora dessa turma, até então calada. – E Crime e castigo, e Anna Karênina, e outros livros russos? Será que todos estão dormindo nas minhas aulas?
Aí, levantando o polegar em sinal de aprovação, pus lenha na fogueira:
– Pois é… Não parece mesmo que a literatura russa esteja na moda!
As opiniões pessoais são inumeráveis. Pode-se dizer que a Rússia derrotou o nazismo na Segunda Guerra Mundial, foi o primeiro país a mandar um homem para o espaço cósmico e passou, em menos de um século, pelas mais diversas e contraditórias fases socioeconômicas, do “capitalismo selvagem” ao “socialismo real” e vice-versa, sendo tudo isso pura verdade. Mas, para mim, o que caracteriza a Rússia acima de quaisquer feitos monumentais são suas maravilhosas artes, inclusive sua grande literatura, independentes da situação histórica nem do regime político. Que tal conhecermos alguns dos seus gloriosos representantes para ver se meu ponto de vista tem cabimento?
O nome que costuma abrir a lista dos principais escritores russos é o de Alexandr Púchkin, autor dalexandre-pushkine belos versos românticos, empolgantes peças teatrais e contos marcados por impecável gosto, fino humor e profunda compaixão pela gente sofrida. Em primeira análise, sua biografia é uma espécie de aberração. Imaginemos só um afrodescendente, nascido num país homogeneamente branco, que não apenas produziu obras literárias de altíssima qualidade, mas foi apelidado pelos seus preconceituosos contemporâneos, sem sombra de exagero ou ironia, de “o sol da poesia russa”! Bisneto do etíope Aníbal, escravo presenteado ao imperador Piotr (Pedro) I, Púchkin se parecia tanto com seu ancestral que os moradores de uma cidadezinha provinciana, aonde ele veio certa vez, resolveram denunciá-lo às autoridades locais como o próprio Anticristo. Nada obstante, o poeta ganhou, ainda em vida, a mais sincera admiração da sociedade russa. Basta folhear, por exemplo, sua “pequena tragédia” Mozart e Salieri ou seu misterioso conto O tiro, ambos capazes de causar arrepios a quem os ler, para se convencer de que era um artista fenomenal. Não é à toa que os russos cultuam Púchkin a par dos seus heróis nacionais; não é ocasionalmente que continuam usando a fulgurante linguagem literária desenvolvida por ele.
A imponente figura de Nikolai Gógol ogogolcupa um lugar de honra na história das letras russas. Por um lado, ele foi um dos remotos antecessores do realismo fantástico de nossos dias: em seus escritos juvenis (Vyi e A terrível vingança, entre outras novelas de terror e suspense), inspirados na tradição folclórica da Ucrânia onde viveu na infância, os demônios, feiticeiros e bruxas atuam junto dos personagens comuns. Por outro lado, deixou à posteridade várias obras satíricas que criticavam as mazelas da Rússia oprimida pelos czares, desmascaravam os abusos de seu governo retrógrado e desumano, escarneciam seus burocratas tão corruptos quanto incompetentes. O capote e O nariz, contos ambientados em São Petersburgo, e a comédia Inspetor geral cujas peripécias se desenrolam no interior russo, demonstram o brilhantismo do talento satírico de Gógol que sabia rir como ninguém, alegre e amargamente.